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Resgatar o feminino

Lembro-me de ser muito pequena e de ter sempre aquelas três mulheres junto a mim. Avó materna, tia e mãe. Apesar das imensas cicatrizes que a vida tinha deixado em cada uma, algo de muito especial trazia equilíbrio e paz à nossa vida. Algo para além de qualquer compreensão, permitia que seguíssemos juntas naquele barco que era a casa em que vivíamos, a vida das quatro e de cada uma.


As três eram mulheres muito fortes e determinadas (a minha mãe aparentemente mais frágil...) e mestres de lições diversas que demorei tempo a compreender.


Tive sempre que me esforçar para ter resultados e para conseguir as coisas. Assim me foi ensinado. O valor do esforço pessoal. Um valor importante. Mas tenho tido muitas bênçãos. Devo por elas sentir gratidão. Ter essas três mulheres na minha infância foi difícil pois nem sempre havia concordância. Mas foi uma bênção na aprendizagem do feminino e do que as mulheres podem fazer juntas, para além das suas diferenças.


Mergulhando nas sombras ao encontro das luzes mais profundas, gerindo a dor de mansinho, desenrolando os nós dos afetos, seguindo em frente.


Apesar dos embates da vida, procurei nunca perder a doçura e a compaixão e aprendi também a não me deixar pisar por ninguém, aprendizagem esta que me tem sido muito útil toda a vida. Pode-se ser doce, sentir compaixão e não ser pisado. Não pisar também.


Eram tardes de trabalhos manuais para apoiar os alunos a que davam aulas, de bordados, de pintura, de descobertas de materiais e texturas, de estudo. A vida muito mental que fui escolhendo foi-me afastando das minhas mãos. Ou estava nelas só para escrever no computador ou para mudar fraldas aos meus três bebés divinos, ou para os acariciar, amamentar, ou para o mínimo de trabalho manual. Talvez seja comum acontecer nas mulheres que escolhem percursos mais mentais muito exigentes, quando o ideal seria conciliar o Saber com o Fazer, com o Sentir e com o Ser.


Sentia muitas saudades de mim e do meu corpo de criança sempre em descoberta e ação. Fui regressando às mãos a pouco e pouco, a elas e ao meu corpo, bocadinho a bocadinho. Foram precisos muitos anos para me lembrar de mim, muito trabalho interior, muito trabalho de resgate do que fora perdido.


Massajando, tocando os corpos numa psicoterapia que vai aos lugares silenciosos que ficam para além das palavras, pintando, cozinhando, tocando quem mais amo, arrancando ervas, plantando sementes, colhendo os frutos do pomar, tratando da horta, fazendo barro, fazendo pão. O gerúndio, esse tempo verbal do que se vai fazendo e que nunca fica completo mas que é o fogo lento em que vamos cozinhando a vida.


Hoje sento-me em roda com as minhas filhas, mulheres que fazem parte de uma geração mais liberta e independente e sinto que algo de bom terei/teremos feito. Resgato o feminino em mim e na minha linhagem materna. Acredito que também na linhagem paterna existem questões do feminino a trabalhar.


Quando me sento com as mulheres de todas as gerações que crescem “à minha beira” e que me ajudam a crescer junto a elas sinto que o mistério se repete e que se repetirá até ao dia em que eu parta. O mistério do sagrado, da cura das dores comuns, o mistério da irmandade.


O mistério da doçura e da compaixão das mulheres guerreiras de corpo e de alma.





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